A esquizopoética do Corpo de festim
Marco Alexandre de Oliveira
Começaremos pela etimologia, o estudo da genealogia das palavras. Por um lado, corpo deriva do latim corpus,
que pode se referir tanto à substância ou matéria em si, quanto à forma
ou figura humana. Também pode denominar o cadáver de um morto, ou até
um conjunto de obras de um autor. Na língua portuguesa, o termo
significa uma série de conceitos relacionados que incluem os citados
acima, além de outros como a “parte principal e central” de qualquer
objeto, inclusive um “texto de obra impressa”.[1]
Por outro lado, festim deriva do latim festa, que se relaciona ao conceito da festividade de um povo durante um feriado. Na língua portuguesa, se o termo festa denomina uma “solenidade”, uma “cerimônia com que se celebra um fato”, uma “comemoração” ou um “fato extraordinário”, o termo festim
significa uma “pequena festa”, um “banquete”, um “festejo particular”
ou uma “festa em família”. Também pode se referir a um “cartucho com um
baixo explosivo, fechado por uma bucha, que se queima com o disparo”.[2]
A poética do Corpo de festim
(2014), de Alexandre Guarnieri, incorpora todas essas definições,
enquanto gera várias outras. Por um lado, a linguagem é substancial,
feita como material de (des)construção de significados múltiplos e
diversos. A técnica é formalista e analisa (bio)logicamente o corpo vivo
até (re)torná-lo morto e dissecado. Os textos impressos expressam a
carne e o osso dos processos orgânicos em (de)composição. E a obra
representa uma amostra de “antropoemas” transcritos e inscritos no
próprio corpo do homem. Por outro lado, o livro é festivo e promove um
festival de sentidos (des)familiares, um banquete de escritos tão
descritivos quanto criativos. Afinal, aponta a sua arma, mira e atira as
suas verdadeiras palavras-balas de mentira contra o corpo linguístico e
literário em si.
Motivo para celebração, esse festim do corpo segue na linha do livro Casa das Máquinas
(2011), mas superficialmente troca a linguagem tecnológica pela
biológica enquanto basicamente funde a tecno-poética com a bio-poética.
Pois se cada máquina em suas peças compõe um corpo, o corpo em suas
partes constitui uma máquina. De certo modo, o Corpo de festim
assim se torna, também, uma “casa das máquinas”, máquinas-poemas
conectadas a máquinas-teorias, cujas ideias são (re)cortes de fontes
(inter)relacionadas: Charles Darwin, Albert Einstein, Stéphane Mallarmé,
Antonin Artaud, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Michel Foucault.
O título do primeiro capítulo do livro,
“DARWIN NÃO JOGA DADOS, MALLARMÉ SIM”, se refere tanto a uma frase
conhecida de Einstein, que certa vez observou que “Deus não joga dados
com o universo”, quanto a um poema pioneiro de Mallarmé, cujo verso
principal diz que “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”. Do mesmo
modo que o fundador da teoria da relatividade nega a incerteza implícita
na teoria da mecânica quântica, Darwin afirma o determinismo explícito
na sua teoria da evolução desenvolvida em Origen das espécies
(1859). Mas se a ciência nova da virada do século XX é predominantemente
determinista, a poesia inovadora da mesma época é concomitantemente
aleatória. Esse movimento se inicia com Um lance de dados
(1897) e continua com as experiências vanguardistas dos futuristas e
dadaístas até culminar com os concretistas. Se, por um lado, as
referências a Einstein e Darwin são evidentes nos discursos científicos
que (in)formam os textos, a referência a Mallarmé é aparente nas
experimentações poéticas que (des)caracterizam o livro, desde a sua
tipografia atípica até a sua composição em decomposição. Foi o crítico
Walter Benjamin que revelou, em seu ensaio “Rua de mão única” (1928),
que a revolução da poesia moderna de Mallarmé representava uma
recuperação da antiga escrita em suas dimensões gráficas ou figurativas.
Essa observação relaciona o poeta aos cientistas revolucionários, que
buscaram delinear uma certa evolução a partir de determinadas origens.
Desse modo, o Corpo de festim
começa traçando a origem e evolução tanto da vida, materializada a
partir do “átomo de carbono”, quanto da escrita, realizada a partir do
“sangue”, “suor” e “celulose”. A série “o átomo de carbono” descreve a
história do corpo desde o big bang cósmico até a
formação do nosso planeta pelas forças de água, ar, fogo e terra, onde
surge a vida em toda a sua (bio)diversidade de formas, culminando com o
nascimento e desenvolvimento do homem. Analogamente, a série “sangue |
suor / e celulose” descreve a biografia do livro como a dilaceração da
pele e a violação do papel, ambos marcados pelo sangue vermelho que logo
vira tinta preta. Esse chamado “livro corporal”, (de)composto de textos
(des)contextualizados, é a (trans)figuração do corpo em livro, e vice
versa, nos versos expressos e impressos. As duas séries paralelas,
portanto, se relacionam e se relativizam no corpo concebido como um
“livro aberto”, cuja “pele” é a “capa” e cujos “órgãos” são os “textos”.
No entanto, uma vez nascido, esse corpo-livro (pre)vê uma escolha
profundamente individual, e fundamentalmente existencial: “revoltar-se”
ou “voltar” às origens. Enfim, o primeiro capítulo termina assim, com um
“bem-vindo” a esse livro-corpo, finalmente (re)tratado como “um
conjunto mecanismo”.[3]
O título do segundo capítulo,
“CORPO-SÓ-ÓRGÃOS”, dialoga com o termo “corpo sem órgãos”, conceituado
originalmente por Artaud e elaborado posteriormente por Deleuze e
Guattari no livro O Anti-Édipo (1972), uma (re)leitura radical e
revolucionária de Sigmund Freud e Karl Marx. Observa-se que “o corpo
pleno sem órgãos é o improdutivo, o estéril, o inengendrado, o
inconsumível. Antonin Artaud o descobriu, lá onde ele se encontrava, sem
forma e sem figura”.[4]
O filósofo e o psicanalista até citam os próprios versos do poeta – “O
corpo é o corpo/ ele está só/ e não precisa de órgão/ o corpo nunca é um
organismo/ os organismos são os inimigos do corpo” – após comentar que
há um “conflito aparente” entre o corpo sem órgãos, que é
“antiprodução”, e as “máquinas desejantes”, que são a “produção de
produção”.[5]
Ao constatar esse processo de produção “primária” e “universal”, que
(re)produz tanto o(s) corpo(s) quanto o mundo em si, nota-se que há “tão
somente máquinas em toda parte, e sem qualquer metáfora: máquinas de
máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões. Uma máquina-órgão é
conectada a uma máquina-fonte: esta emite um fluxo que a outra corta.”
Por exemplo, o seio materno é “uma máquina que produz leite”, enquanto a
boca infantil é “uma máquina acoplada a ela”. As máquinas desejantes,
portanto, incluem qualquer órgão do corpo, junto com as suas respectivas
funções. Assim, e lembrando o discurso do antropólogo Claude
Lévi-Strauss, “todos somos ‘bricoleurs’; cada um com as suas pequenas máquinas. Uma máquina-órgão para uma máquina-energia, sempre fluxos e cortes”.[6]
O corpo como um todo, inclusive, também pode ser considerado uma
espécie de máquina que, por sua vez, está sempre conectada a outra(s)
máquina(s).
São as máquinas desejantes que, de certo
modo, fazem do corpo um “organismo”. Porém, nesse processo de produção,
“o corpo sofre por estar assim organizado, por não ter outra organização
ou organização nenhuma”. É o caso do esquizofrênico, que deseja
reorganizar tanto o seu corpo quanto o seu mundo para então experimentar
uma nova (des)organização. Como produção de máquinas “desarranjadas” e
peças “desligadas”, o corpo sem órgãos se diferencia do organismo,
portanto, e enfim se identifica como “instinto de morte” ou “corpo pleno
da morte”.[7] Na última análise de Deleuze e Guattari:
O corpo sem órgãos é o improdutivo; no
entanto, é produzido em seu lugar próprio, a seu tempo, na sua síntese
conectiva, como a identidade do produzir e do produto [….] O corpo sem
órgãos não é o testemunho de um nada original, nem o resto de uma
totalidade perdida. E, sobretudo, ele não é uma projeção: nada tem a ver
com o corpo próprio ou com uma imagem do corpo. É o corpo sem imagem.
Ele, o improdutivo, existe aí onde é produzido [….] Ele é
perpetuamente re-injetado na produção [….] O corpo pleno sem órgãos é
antiprodução; mas é ainda uma característica da síntese conectiva ou
produtiva acoplar a produção à antiprodução, a um elemento de
antiprodução. [8]
Desse modo, a referida inimizade ou
“conflito” aparentemente surge porque cada “conexão” ou “produção” das
máquinas desejantes se torna “insuportável” ao corpo sem órgãos na
medida em que, sob os órgãos, se sente “a ação de um Deus que o sabota
ou estrangula ao organizá-lo”. Consequentemente, e ao contrário de um
suposto “contrainvestimento”, há uma “repulsão das máquinas desejantes pelo corpo sem órgãos”.[9]
Existe, assim, uma certa oposição entre “o processo de produção das
máquinas desejantes e a parada improdutiva do corpo sem órgãos”.[10] Ou seja, à produção das “máquinas-órgãos” opõe-se a antiprodução do corpo sem órgãos.[11]
Assim como Deleuze e Guattari
desterritorializam a psicanálise e a reterritorializam como a
“esquizoanálise”, Guarnieri desfaz a psicopoética do organismo e a refaz como a esquizopoética
do “corpo-só-órgãos”, um jogo de palavras que lembra o termo “órgãos
sem corpo”, cunhado pelo também filósofo Slavoj Žižek. Desse modo, ao
invés e ao revés do “objeto não diferenciado” que constitui o “corpo
pleno sem órgãos”,[12]
o “corpo-só-órgãos” seria um objeto diferenciado, um corpo despedaçado
pelas máquinas-órgãos que o (de)compõem. Essas máquinas-órgãos seriam os
próprios poemas do segundo capítulo, cujos títulos já evocam as
diversas partes do corpo (i.e. o baço, os rins, o fígado, o coração, os
pulmões, a pele, a cabeça, os ombros, os joelhos, os pés, o crânio, os
ouvidos, os olhos e o rosto) e seus múltiplos processos fisiológicos.
Destaca-se a série “mecânica dos fluidos”,
que relaciona as secreções corporais (i.e. o sangue, o suor, a lágrima, a
saliva, o sêmen, o leite, a urina, a bile, o pus, a fleugma) às
produções maquinais, pois é o fluxo em si que (inter)conecta as
máquinas-órgãos, segundo Deleuze e Guattari, uma vez que “há sempre uma
máquina produtora de um fluxo, e uma outra que lhe está conectada,
operando um corte, uma extração de fluxo (o seio — a boca)”. Por
exemplo:
Bolsa de águas e cálculos do rim; fluxo
de cabelo, fluxo de baba, fluxo de esperma, de merda ou de urina
produzidos por objetos parciais, constantemente cortados por outros
objetos parciais que, por sua vez, produzem outros fluxos também
recortados por outros objetos parciais. Todo “objeto” supõe a
continuidade de um fluxo, e todo fluxo supõe a fragmentação do objeto.[13]
Ao formular relações com a “esquizoanálise” de Deleuze e Guattari, a esquizopoética de Guarnieri revela múltiplos sentidos tão biológicos quanto psicológicos. Como observa Deleuze em A lógica do sentido (1969), na linguagem esquizofrênica: “Toda palavra é física, afeta imediatamente o corpo”.[15]
O próprio pai da psicanálise, Sigmund Freud, em “O inconsciente”
(1915), antes notou que “a fala esquizofrênica […] torna-se linguagem do órgão.[16]
O “corpo-só-órgãos” assim incorpora não somente uma linguagem, mas
também e principalmente uma poética “esquizofrênica”, que re(a)presentam
o organismo como uma multiplicidade, uma vez que os órgãos transcritos
como “antropoemas” assumem funções outras e estabelecem conexões
diversas. Ao comentar a poesia de Artaud, Deleuze resumiu a produção
linguística do esquizofrênico deste modo:
O procedimento é do seguinte gênero:
uma palavra, frequentemente de natureza alimentar, aparece […] como em
uma colagem que a fixa e a destitui de seu sentido; mas ao mesmo tempo
em que perde seu sentido, a palavra afixada explode em pedaços,
decompõe-se em silabas, letras, sobretudo consoantes que agem
diretamente sobre o corpo, penetrando-o e mortificando-o [….] As partes
do corpo, órgãos, determinam-se em função dos elementos decompostos que
os afetam e os agridem.[17]
De modo análogo, na esquizopoética
de Guarnieri, cada poema é concreto, (trans)forma diretamente o
organismo. O “procedimento” é o seguinte: um poema, geralmente de
natureza fisiológica, surge como em um texto que (sobre)determina e
des(cons)troe o seu conteúdo; concomitantemente, o determinado poema
desfaz-se em frases, decompõe-se em palavras, sílabas, sobretudo
pontuação que se inscrevem no corpo, descrevendo-o e transcrevendo-o.
Assim, as partes do corpo, os órgãos, re(des)organizam-se em função dos
elementos decompostos que os (trans)formam e transgridem.
O título do terceiro capítulo, “VIGIAR E
PUNIR”, se refere ao livro homônimo escrito por Foucault (1975), que
dialoga com Deleuze e Guattari ao observar como o corpo humano, enquanto
organismo, tem sido dom(in)ado pelo poder na modernidade. O objetivo do
livro, segundo o filósofo, é escrever “uma história da alma moderna em
julgamento” a partir de “uma tecnologia política do corpo”, para então
poder compreender como “um modo específico de sujeição pôde dar origem
ao homem como objeto de saber para um discurso com status ‘científico’”.[18]
Esse “discurso”, de certo modo, incorpora toda a episteme da
modernidade, em que o humanismo (re)aparece (in)vestido do capitalismo.
Para Foucault, o homem está literalmente e figurativamente sujeito a uma
“economia política” do corpo, que não necessariamente se baseia em uma
“história” do corpo biológica ou sociológica. À princípio, o corpo está
envolvido em um “campo político” que está (inter)relacionado à sua
“utilização econômica”.[19]
Assim, se “é como força de produção que o corpo é investido por
relações de poder e de dominação”, ao mesmo tempo, “sua constituição
como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de
sujeição”. Ou seja, o corpo em si torna-se “força útil” apenas na medida
em que é tanto “corpo produtivo” quanto “corpo submisso”.[20]
A chamada “tecnologia política do corpo”, então, se constitui por “um
‘saber’ do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e
um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las”.[21]
Essa tecnologia trata-se de “uma microfísica do poder” cuja história
seria “uma genealogia da ‘alma’ moderna”, uma alma que não é ilusória
nem ideológica mas é real e “produzida” no corpo pelo exercício do poder
sobre todos “os que são fixados a um aparelho de produção e controlados
durante toda a existência”. Para concluir, como observa Foucault:
Esta alma real e incorpórea não é
absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de
um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela
qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber
reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa realidade-referência,
vários conceitos foram construídos e campos de análise foram
demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência, etc.;
sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir
dela, valorizaram-se as reivindicações morais do humanismo.[22]
Origem epistemológica do sujeito
moderno, a alma humana assim se revela como “uma peça no domínio
exercido pelo poder sobre o corpo”, ou então, como “efeito e instrumento
de uma anatomia política”. Em suma, e ao contrário da alma clássica ou
medieval, que era presa dentro do corpo, a alma moderna figura como a
“prisão do corpo”.[23]
De certo modo, é a imagem do corpo preso que ilustra o espírito de Corpo de festim,
cuja capa apresenta o mágico Harry Houdini todo algemado, enquanto
almeja fugir. Como o artista da fome de Franz Kafka, o ilusionista
aparece apenas para desaparecer no final, como um sujeito livre de
sujeição. No entanto, há de passar pelo estado do “vigiar e punir” para
então poder sonhar com a liberdade de não ser mais um ser human(izad)o.
Os poemas do último capítulo assim observam o corpo subjugado pelas
forças do poder que o organizam em forma de organismo produtivo, ao
mesmo tempo que a sua “personalidade” esquizofrênica procura a cura
através da transgressão e subversão dos (im)próprios modos de ser.
Em “ânus humano ( . ) ônus santo”, o
órgão tradicionalmente (não) visto como tabu, retratado como “obscuro” e
“sujo”, vem à luz como “binômio ambíguo, um doloroso alívio, entre a
punição e o prêmio”, uma fonte de prazer desprezível através do acesso
proibido. Conforme já dito, esse desejo para os órgãos realizarem outras
funções ou conexões é característico do esquizofrênico, assim como a
vontade para as palavras representarem outros significados ou sentidos. O
título do poema, por exemplo, segue o procedimento de uma linguagem
esquizofrênica, e consequentemente concreta, que associa as palavras
“ânus” e “ônus” na base da sua semelhança fonética, enquanto contrapõe
as palavras “humano” e “santo” para então poder relacioná-las. Por fim, a
pontuação também acentua uma certa esquizofrenia ao representar
tipograficamente a forma de duas nádegas e um “orifício”.[24]
Do mesmo modo, os outros poemas do capítulo assinalam a esquizopoética
dos chamados “antropoemas” sobre o corpo que o (de)compõem. Em relação à
estrutura, os títulos “biótopo”, “cotidianometria” e “limitrofagia”
constituem neologismos formados a partir da (trans)fusão de palavras,
prefixos e sufixos (i.e. biótipo + topo; cotidiano + -metria; limite +
fagía). Em relação ao conteúdo, esses e outros poemas expressam tanto a
sensação de ficar preso a um “sistema de sujeição”, como diria Foucault,
quanto o sentimento de “repulsão” por ser ou estar sujeito aos
processos de produção, como diriam Deleuze e Guattari. Assim, “o sono” e
“a preguiça” são relacionados ao “ócio”, enquanto o corpo é submetido à
“prova”, ao exame, ao remédio, à medida, ao limite, até que encontra a
(re)solução de morrer, de voltar na forma de uma “retrogressão” ou de
revoltar-se na forma de uma revolução contra o próprio organismo através
do suicídio.[25]
Percebe-se, enfim, a existência
esquizofrênica de um cisma profundo dentro do corpo do homem, no
(re)conhecimento da sua própria “alteridade”, ou identidade fundada em
diferença. Pois além do corpo há uma “outra coisa”, uma coisa
“desabitada de si”, uma coisa “quase vazia” e “firmada no nada, no
vácuo”, que essencialmente habita um entre–lugar,
“entre moléculas, entre partículas elétricas, entre ondas de rádio,
entre vórtices de ar […] entre a fronteira do campo de visão e uma
esfera de conceito […] entre o tempo e o espaço, entre a hora e o
atraso, entre o vivo e o morto”. Desde os diversos “interstícios” essa
“outra” coisa, seja um “vulto” ou uma “aura”, que talvez exista “pelo
espaço vazio entre os corpos”, que é tanto “causa” quanto
“consequência”, é afirmada como “algo inglório”, como “o que poderia
impedir de evadir-se a si própria”.[26]
Portanto, é essa (outra) coisa que finalmente deveria ser destruída
através da morte do corpo, cuja “necropsia” significaria a extinção do
“homem” em si. Se, por um lado, “o cadáver já navega ( a balsa
compulsória sobre a lâmina d’água ), entregue ao necrotério”, por outro
lado, “vai-se mais um morto para o rio estige”.[27]
[….] EU me revelo subitamente
egresso de algum túnel até então ocultado e surjo não menos demiúrgico,
neste exato momento do espetáculo, talvez o mais obscuro, por sobre
cujas palavras arbitrárias se erguem unicamente as escolhas do MEU
monstruoso critério estético e, como frankenstein, EU sou
este poeta, sou o autor deste poema (onde o excêntrico cientista e a
brutal criatura se misturam), sou EU o prisioneiro solitário desta cela
simétrica a 35 graus entígrados (são braços e pernas, são duas janelas)
cujas paredes de células me encerram na vigília das sensações que se
elevam à quase exaustão do estar em mim, enquanto criador deste
específico livro de poemas cujo título corpo de festim
revisita a minha própria sina de estar vivo e produtivo, mas não
faria mal descobrir o mecanismo, o gatilho, de cometer o único crime
previsível, quiçá um icônico suicídio pela honra, ritualizado à moda
nipônica, para destituir-me enquanto símbolo terrível, do self à tal persona poética, de toda a libido, do meu “EU-lírico” (esse serial killer, ou o meu místico inner being) [….][28]
Através do discurso do “poeta”, que se
autorrefere tanto como “persona poética” quanto como “EU-lírico”,
percebe-se a fala ou escrita esquizofrênica do homem “prisioneiro”
dentro do corpo, onde está “vivo e produtivo”. A princípio, o trecho
citado acima lembra tanto de Foucault em Vigiar e punir, quando discursa sobre o corpo “preso” e “produtivo”, quanto de Deleuze e Guattari em Anti–Édipo,
quando discursam sobre o “corpo sem órgãos”, (in)definido como “o
modelo da morte” que “aparece quando o corpo sem órgãos repele e depõe
os órgãos — nem boca, nem língua, nem dentes… até à automutilação, até
ao suicídio”.[29] Ao relacionar analogicamente o corpo com a mandala,
uma representação do cosmos em forma de diagrama que é utilizada em
rituais tântricos de meditação, o poema também encenaria ora o movimento
para uma (im)possível (re)união entre o ser humano (individual) e um
Ser divino (universal), entre o eu e um Deus, ora o processo
para uma (não) eventual (re)unificação das partes do ser fragmentado. Se
por um lado o poeta enquanto homem se identifica com a sua alma e seu corpo, por outro lado, ao desejar se “destituir” da sua “persona”, o homem enquanto poeta
finalmente (re)conhece que é o seu próprio “ego” que o faz ser um “EU”
sujeito, e não um OUTRO livre. Produz-se, enfim, o desejo de produzir um
produto improdutivo, ou até improdutível: a poesia sem o poeta. O poeta
assim se tornaria, como Houdini, “o artista desaparecido sem deixar
vestígio”, pois só poderia “livrar-se dos cadeados e das grades […] se
fosse possível simplesmente, e para sempre, DESAPARECER DE VEZ”. [30]
Sem a identidade do poeta “EM SI”, não
haveria mais o uni-verso unitário dos poemas, haveria apenas os
multi-versos diversos da poesia. Na esquizopoética de Guarnieri, o “EU” não está mais preso no corpo nem é mais a prisão do corpo, pois nos “antropoemas” que (de)compõem o Corpo de festim, o próprio homem é literalmente e figurativamente (re)escrito, tanto
pelo corpo do livro quanto pelo livro do corpo, como poema objeto e não
sujeito à (in)corporação. Afinal, tanto as máquinas-poemas quanto as
máquinas-teorias estão plenamente desarranjadas e desligadas, e assim
funcionam!
[2] http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=festa;
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=festim
[3] GUARNIERI, Alexandre. Corpo de festim – antropoemas. Rio de Janeiro, Confraria do Vento, 2014, 13-31.
[4] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010, p.20.
[5] Ibid., 18.
[6] Ibid., 11.
[7] Ibid., 20.
[8] Ibid., 20-21.
[9] Ibid., 21.
[10] Ibid., 22.
[11] Ibid., 21.
[12] Ibid., 20.
[13] Ibid., 16.
[14] Ibid., 20.
[15] DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.
[16] FREUD, Sigmund. “O inconsciente”. Em: Sigmund Freud obras completas volume 12: Introdução ao narcisismo, Ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 103.
[17] DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.
[18] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2004, p. 23-24.
[19] Ibid., 25.
[20] Ibid., 25-26.
[21] Ibid., 26.
[22] Ibid., 26-29.
[23] Ibid., 29.
[24] GUARNIERI, Alexandre. Corpo de festim – antropoemas. Rio de Janeiro, Confraria do Vento, 2014, 82-83.
[25] Ibid., 84-101.
[26] Ibid., 102-103.
[27] Ibid., 104-105.
[28] Ibid., 106-107.
[29] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010, p.435.
[30] GUARNIERI, Alexandre. Corpo de festim – antropoemas. Rio de Janeiro, Confraria do Vento, 2014, 106-107.
[Fonte: https://zonadapalavra.wordpress.com/2015/07/24/resenha-sobre-corpo-de-festim-de-alexandre-guarnieri-por-marco-alexandre-de-oliveira/]
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