Tuesday, July 28, 2015

"A esquizopoética do CORPO DE FESTIM" em ZONA DA PALAVRA

A esquizopoética do Corpo de festim


                                                                                                               Marco Alexandre de Oliveira

Começaremos pela etimologia, o estudo da genealogia das palavras. Por um lado, corpo deriva do latim corpus, que pode se referir tanto à substância ou matéria em si, quanto à forma ou figura humana. Também pode denominar o cadáver de um morto, ou até um conjunto de obras de um autor. Na língua portuguesa, o termo significa uma série de conceitos relacionados que incluem os citados acima, além de outros como a “parte principal e central” de qualquer objeto, inclusive um “texto de obra impressa”.[1]

Por outro lado, festim deriva do latim festa, que se relaciona ao conceito da festividade de um povo durante um feriado. Na língua portuguesa, se o termo festa denomina uma “solenidade”, uma “cerimônia com que se celebra um fato”, uma “comemoração” ou um “fato extraordinário”, o termo festim significa uma “pequena festa”, um “banquete”, um “festejo particular” ou uma “festa em família”. Também pode se referir a um “cartucho com um baixo explosivo, fechado por uma bucha, que se queima com o disparo”.[2]

A poética do Corpo de festim (2014), de Alexandre Guarnieri, incorpora todas essas definições, enquanto gera várias outras. Por um lado, a linguagem é substancial, feita como material de (des)construção de significados múltiplos e diversos. A técnica é formalista e analisa (bio)logicamente o corpo vivo até (re)torná-lo morto e dissecado. Os textos impressos expressam a carne e o osso dos processos orgânicos em (de)composição. E a obra representa uma amostra de “antropoemas” transcritos e inscritos no próprio corpo do homem. Por outro lado, o livro é festivo e promove um festival de sentidos (des)familiares, um banquete de escritos tão descritivos quanto criativos. Afinal, aponta a sua arma, mira e atira as suas verdadeiras palavras-balas de mentira contra o corpo linguístico e literário em si.

Motivo para celebração, esse festim do corpo segue na linha do livro Casa das Máquinas (2011), mas superficialmente troca a linguagem tecnológica pela biológica enquanto basicamente funde a tecno-poética com a bio-poética. Pois se cada máquina em suas peças compõe um corpo, o corpo em suas partes constitui uma máquina. De certo modo, o Corpo de festim assim se torna, também, uma “casa das máquinas”, máquinas-poemas conectadas a máquinas-teorias, cujas ideias são (re)cortes de fontes (inter)relacionadas: Charles Darwin, Albert Einstein, Stéphane Mallarmé, Antonin Artaud, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Michel Foucault.

O título do primeiro capítulo do livro, “DARWIN NÃO JOGA DADOS, MALLARMÉ SIM”, se refere tanto a uma frase conhecida de Einstein, que certa vez observou que “Deus não joga dados com o universo”, quanto a um poema pioneiro de Mallarmé, cujo verso principal diz que “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”. Do mesmo modo que o fundador da teoria da relatividade nega a incerteza implícita na teoria da mecânica quântica, Darwin afirma o determinismo explícito na sua teoria da evolução desenvolvida em Origen das espécies (1859). Mas se a ciência nova da virada do século XX é predominantemente determinista, a poesia inovadora da mesma época é concomitantemente aleatória. Esse movimento se inicia com Um lance de dados (1897) e continua com as experiências vanguardistas dos futuristas e dadaístas até culminar com os concretistas. Se, por um lado, as referências a Einstein e Darwin são evidentes nos discursos científicos que (in)formam os textos, a referência a Mallarmé é aparente nas experimentações poéticas que (des)caracterizam o livro, desde a sua tipografia atípica até a sua composição em decomposição. Foi o crítico Walter Benjamin que revelou, em seu ensaio “Rua de mão única” (1928), que a revolução da poesia moderna de Mallarmé representava uma recuperação da antiga escrita em suas dimensões gráficas ou figurativas. Essa observação relaciona o poeta aos cientistas revolucionários, que buscaram delinear uma certa evolução a partir de determinadas origens.

Desse modo, o Corpo de festim começa traçando a origem e evolução tanto da vida, materializada a partir do “átomo de carbono”, quanto da escrita, realizada a partir do “sangue”, “suor” e “celulose”. A série “o átomo de carbono” descreve a história do corpo desde o big bang cósmico até a formação do nosso planeta pelas forças de água, ar, fogo e terra, onde surge a vida em toda a sua (bio)diversidade de formas, culminando com o nascimento e desenvolvimento do homem. Analogamente, a série “sangue | suor / e celulose” descreve a biografia do livro como a dilaceração da pele e a violação do papel, ambos marcados pelo sangue vermelho que logo vira tinta preta. Esse chamado “livro corporal”, (de)composto de textos (des)contextualizados, é a (trans)figuração do corpo em livro, e vice versa, nos versos expressos e impressos. As duas séries paralelas, portanto, se relacionam e se relativizam no corpo concebido como um “livro aberto”, cuja “pele” é a “capa” e cujos “órgãos” são os “textos”. No entanto, uma vez nascido, esse corpo-livro (pre)vê uma escolha profundamente individual, e fundamentalmente existencial: “revoltar-se” ou “voltar” às origens. Enfim, o primeiro capítulo termina assim, com um “bem-vindo” a esse livro-corpo, finalmente (re)tratado como “um conjunto mecanismo”.[3]

O título do segundo capítulo, “CORPO-SÓ-ÓRGÃOS”, dialoga com o termo “corpo sem órgãos”, conceituado originalmente por Artaud e elaborado posteriormente por Deleuze e Guattari no livro O Anti-Édipo (1972), uma (re)leitura radical e revolucionária de Sigmund Freud e Karl Marx. Observa-se que “o corpo pleno sem órgãos é o improdutivo, o estéril, o inengendrado, o inconsumível. Antonin Artaud o descobriu, lá onde ele se encontrava, sem forma e sem figura”.[4] O filósofo e o psicanalista até citam os próprios versos do poeta – “O corpo é o corpo/ ele está só/ e não precisa de órgão/ o corpo nunca é um organismo/ os organismos são os inimigos do corpo” – após comentar que há um “conflito aparente” entre o corpo sem órgãos, que é “antiprodução”, e as “máquinas desejantes”, que são a “produção de produção”.[5] Ao constatar esse processo de produção “primária” e “universal”, que (re)produz tanto o(s) corpo(s) quanto o mundo em si, nota-se que há “tão somente máquinas em toda parte, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões. Uma máquina-órgão é conectada a uma máquina-fonte: esta emite um fluxo que a outra corta.” Por exemplo, o seio materno é “uma máquina que produz leite”, enquanto a boca infantil é “uma máquina acoplada a ela”. As máquinas desejantes, portanto, incluem qualquer órgão do corpo, junto com as suas respectivas funções. Assim, e lembrando o discurso do antropólogo Claude Lévi-Strauss, “todos somos ‘bricoleurs’; cada um com as suas pequenas máquinas. Uma máquina-órgão para uma máquina-energia, sempre fluxos e cortes”.[6] O corpo como um todo, inclusive, também pode ser considerado uma espécie de máquina que, por sua vez, está sempre conectada a outra(s) máquina(s).

São as máquinas desejantes que, de certo modo, fazem do corpo um “organismo”. Porém, nesse processo de produção, “o corpo sofre por estar assim organizado, por não ter outra organização ou organização nenhuma”. É o caso do esquizofrênico, que deseja reorganizar tanto o seu corpo quanto o seu mundo para então experimentar uma nova (des)organização. Como produção de máquinas “desarranjadas” e peças “desligadas”, o corpo sem órgãos se diferencia do organismo, portanto, e enfim se identifica como “instinto de morte” ou “corpo pleno da morte”.[7] Na última análise de Deleuze e Guattari:


 O corpo sem órgãos é o improdutivo; no entanto, é produzido em seu lugar próprio, a seu tempo, na sua síntese conectiva, como a identidade do produzir e do produto [….] O corpo sem órgãos não é o testemunho de um nada original,  nem o resto de uma totalidade perdida. E, sobretudo, ele não é uma projeção: nada tem a ver com o corpo próprio ou com uma imagem do corpo. É o corpo  sem imagem. Ele, o improdutivo, existe aí onde é produzido [….] Ele é             perpetuamente re-injetado na produção [….] O corpo pleno sem órgãos é antiprodução; mas é ainda uma característica da síntese conectiva ou  produtiva acoplar a produção à antiprodução, a um elemento de antiprodução. [8]


Desse modo, a referida inimizade ou “conflito” aparentemente surge porque cada “conexão” ou “produção” das máquinas desejantes se torna “insuportável” ao corpo sem órgãos na medida em que, sob os órgãos, se sente “a ação de um Deus que o sabota ou estrangula ao organizá-lo”. Consequentemente, e ao contrário de um suposto “contrainvestimento”, há uma “repulsão das máquinas desejantes pelo corpo sem órgãos”.[9] Existe, assim, uma certa oposição entre “o processo de produção das máquinas desejantes e a parada improdutiva do corpo sem órgãos”.[10] Ou seja, à produção das “máquinas-órgãos” opõe-se a antiprodução do corpo sem órgãos.[11]

Assim como Deleuze e Guattari desterritorializam a psicanálise e a reterritorializam como a “esquizoanálise”, Guarnieri desfaz a psicopoética do organismo e a refaz como a esquizopoética do “corpo-só-órgãos”, um jogo de palavras que lembra o termo “órgãos sem corpo”, cunhado pelo também filósofo Slavoj Žižek. Desse modo, ao invés e ao revés do “objeto não diferenciado” que constitui o “corpo pleno sem órgãos”,[12] o “corpo-só-órgãos” seria um objeto diferenciado, um corpo despedaçado pelas máquinas-órgãos que o (de)compõem. Essas máquinas-órgãos seriam os próprios poemas do segundo capítulo, cujos títulos já evocam as diversas partes do corpo (i.e. o baço, os rins, o fígado, o coração, os pulmões, a pele, a cabeça, os ombros, os joelhos, os pés, o crânio, os ouvidos, os olhos e o rosto) e seus múltiplos processos fisiológicos. Destaca-se a série “mecânica dos fluidos”, que relaciona as secreções corporais (i.e. o sangue, o suor, a lágrima, a saliva, o sêmen, o leite, a urina, a bile, o pus, a fleugma) às produções maquinais, pois é o fluxo em si que (inter)conecta as máquinas-órgãos, segundo Deleuze e Guattari, uma vez que “há sempre uma máquina produtora de um fluxo, e uma outra que lhe está conectada, operando um corte, uma extração de fluxo (o seio — a boca)”. Por exemplo:


Bolsa de águas e cálculos do rim; fluxo de cabelo, fluxo de baba, fluxo de   esperma, de merda ou de urina produzidos por objetos parciais, constantemente  cortados por outros objetos parciais que, por sua vez, produzem outros fluxos também recortados por outros objetos parciais. Todo “objeto” supõe a   continuidade de um fluxo, e todo fluxo supõe a fragmentação do objeto.[13]


Para concluir, se o corpo sem órgãos de Deleuze e Guattari pressupõe “um puro fluido, em estado livre e sem cortes”,[14] o “corpo-só-órgãos” de Guarnieri expõe vários fluidos impuros, em estados (pre)fixos e com (re)cortes.

Ao formular relações com a “esquizoanálise” de Deleuze e Guattari, a esquizopoética de Guarnieri revela múltiplos sentidos tão biológicos quanto psicológicos. Como observa Deleuze em A lógica do sentido (1969), na linguagem esquizofrênica: “Toda palavra é física, afeta imediatamente o corpo”.[15] O próprio pai da psicanálise, Sigmund Freud, em “O inconsciente” (1915), antes notou que “a fala esquizofrênica […] torna-se linguagem do órgão.[16] O “corpo-só-órgãos” assim incorpora não somente uma linguagem, mas também e principalmente uma poética “esquizofrênica”, que re(a)presentam o organismo como uma multiplicidade, uma vez que os órgãos transcritos como “antropoemas” assumem funções outras e estabelecem conexões diversas. Ao comentar a poesia de Artaud, Deleuze resumiu a produção linguística do esquizofrênico deste modo:


  O procedimento é do seguinte gênero: uma palavra, frequentemente de natureza alimentar, aparece […] como em uma colagem que a fixa e a destitui de seu  sentido; mas ao mesmo tempo em que perde seu sentido, a palavra afixada  explode em pedaços, decompõe-se em silabas, letras, sobretudo consoantes que agem diretamente sobre o corpo, penetrando-o e mortificando-o [….] As partes do corpo, órgãos, determinam-se em função dos elementos decompostos que os             afetam e os agridem.[17]


De modo análogo, na esquizopoética de Guarnieri, cada poema é concreto, (trans)forma diretamente o organismo. O “procedimento” é o seguinte: um poema, geralmente de natureza fisiológica, surge como em um texto que (sobre)determina e des(cons)troe o seu conteúdo; concomitantemente, o determinado poema desfaz-se em frases, decompõe-se em palavras, sílabas, sobretudo pontuação que se inscrevem no corpo, descrevendo-o e transcrevendo-o. Assim, as partes do corpo, os órgãos, re(des)organizam-se em função dos elementos decompostos que os (trans)formam e transgridem.

O título do terceiro capítulo, “VIGIAR E PUNIR”, se refere ao livro homônimo escrito por Foucault (1975), que dialoga com Deleuze e Guattari ao observar como o corpo humano, enquanto organismo, tem sido dom(in)ado pelo poder na modernidade. O objetivo do livro, segundo o filósofo, é escrever “uma história da alma moderna em julgamento” a partir de “uma tecnologia política do corpo”, para então poder compreender como “um modo específico de sujeição pôde dar origem ao homem como objeto de saber para um discurso com status ‘científico’”.[18] Esse “discurso”, de certo modo, incorpora toda a episteme da modernidade, em que o humanismo (re)aparece (in)vestido do capitalismo. Para Foucault, o homem está literalmente e figurativamente sujeito a uma “economia política” do corpo, que não necessariamente se baseia em uma “história” do corpo biológica ou sociológica. À princípio, o corpo está envolvido em um “campo político” que está (inter)relacionado à sua “utilização econômica”.[19] Assim, se “é como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação”, ao mesmo tempo, “sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição”. Ou seja, o corpo em si torna-se “força útil” apenas na medida em que é tanto “corpo produtivo” quanto “corpo submisso”.[20] A chamada “tecnologia política do corpo”, então, se constitui por “um ‘saber’ do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las”.[21] Essa tecnologia trata-se de “uma microfísica do poder” cuja história seria “uma genealogia da ‘alma’ moderna”, uma alma que não é ilusória nem ideológica mas é real e “produzida” no corpo pelo exercício do poder sobre todos “os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência”. Para concluir, como observa Foucault:


Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa realidade-referência, vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência, etc.; sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir dela, valorizaram-se as reivindicações morais do humanismo.[22]


Origem epistemológica do sujeito moderno, a alma humana assim se revela como “uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo”, ou então, como “efeito e instrumento de uma anatomia política”. Em suma, e ao contrário da alma clássica ou medieval, que era presa dentro do corpo, a alma moderna figura como a “prisão do corpo”.[23]

De certo modo, é a imagem do corpo preso que ilustra o espírito de Corpo de festim, cuja capa apresenta o mágico Harry Houdini todo algemado, enquanto almeja fugir. Como o artista da fome de Franz Kafka, o ilusionista aparece apenas para desaparecer no final, como um sujeito livre de sujeição. No entanto, há de passar pelo estado do “vigiar e punir” para então poder sonhar com a liberdade de não ser mais um ser human(izad)o. Os poemas do último capítulo assim observam o corpo subjugado pelas forças do poder que o organizam em forma de organismo produtivo, ao mesmo tempo que a sua “personalidade” esquizofrênica procura a cura através da transgressão e subversão dos (im)próprios modos de ser.

Em “ânus humano ( . ) ônus santo”, o órgão tradicionalmente (não) visto como tabu, retratado como “obscuro” e “sujo”, vem à luz como “binômio ambíguo, um doloroso alívio, entre a punição e o prêmio”, uma fonte de prazer desprezível através do acesso proibido. Conforme já dito, esse desejo para os órgãos realizarem outras funções ou conexões é característico do esquizofrênico, assim como a vontade para as palavras representarem outros significados ou sentidos. O título do poema, por exemplo, segue o procedimento de uma linguagem esquizofrênica, e consequentemente concreta, que associa as palavras “ânus” e “ônus” na base da sua semelhança fonética, enquanto contrapõe as palavras “humano” e “santo” para então poder relacioná-las. Por fim, a pontuação também acentua uma certa esquizofrenia ao representar tipograficamente a forma de duas nádegas e um “orifício”.[24]
Do mesmo modo, os outros poemas do capítulo assinalam a esquizopoética dos chamados “antropoemas” sobre o corpo que o (de)compõem. Em relação à estrutura, os títulos “biótopo”, “cotidianometria” e “limitrofagia” constituem neologismos formados a partir da (trans)fusão de palavras, prefixos e sufixos (i.e. biótipo + topo; cotidiano + -metria; limite + fagía). Em relação ao conteúdo, esses e outros poemas expressam tanto a sensação de ficar preso a um “sistema de sujeição”, como diria Foucault, quanto o sentimento de “repulsão” por ser ou estar sujeito aos processos de produção, como diriam Deleuze e Guattari. Assim, “o sono” e “a preguiça” são relacionados ao “ócio”, enquanto o corpo é submetido à “prova”, ao exame, ao remédio, à medida, ao limite, até que encontra a (re)solução de morrer, de voltar na forma de uma “retrogressão” ou de revoltar-se na forma de uma revolução contra o próprio organismo através do suicídio.[25]

Percebe-se, enfim, a existência esquizofrênica de um cisma profundo dentro do corpo do homem, no (re)conhecimento da sua própria “alteridade”, ou identidade fundada em diferença. Pois além do corpo há uma “outra coisa”, uma coisa “desabitada de si”, uma coisa “quase vazia” e “firmada no nada, no vácuo”, que essencialmente habita um entrelugar, “entre moléculas, entre partículas elétricas, entre ondas de rádio, entre vórtices de ar […] entre a fronteira do campo de visão e uma esfera de conceito […] entre o tempo e o espaço, entre a hora e o atraso, entre o vivo e o morto”. Desde os diversos “interstícios” essa “outra” coisa, seja um “vulto” ou uma “aura”, que talvez exista “pelo espaço vazio entre os corpos”, que é tanto “causa” quanto “consequência”, é afirmada como “algo inglório”, como “o que poderia impedir de evadir-se a si própria”.[26]  Portanto, é essa (outra) coisa que finalmente deveria ser destruída através da morte do corpo, cuja “necropsia” significaria a extinção do “homem” em si. Se, por um lado, “o cadáver já navega ( a balsa compulsória sobre a lâmina d’água ), entregue ao necrotério”, por outro lado, “vai-se mais um morto para o rio estige”.[27]

Assim, o Corpo de festim termina com o corpo morto, enquanto a alma ainda (sobre)vive.  Como se fosse uma espécie de epílogo do livro, o último poema “mandala de houdini” (re)coloca a questão espiritual no “âmago” da questão corporal, pois afinal, como escapar de si mesmo se não através do outro em si? Incorpora-se, desse modo, a voz do próprio “poeta”, que se revela em forma de ars poetica:


            [….] EU me revelo subitamente egresso de algum túnel até então ocultado e surjo não menos demiúrgico, neste exato momento do espetáculo, talvez o  mais obscuro, por sobre cujas palavras arbitrárias se erguem unicamente as   escolhas do MEU monstruoso critério estético e, como frankenstein, EU sou   este poeta, sou o autor deste poema (onde o excêntrico cientista e a brutal criatura se misturam), sou EU o prisioneiro solitário desta cela simétrica a 35 graus entígrados (são braços e pernas, são duas janelas) cujas paredes de  células me encerram na vigília das sensações que se elevam à quase exaustão do estar em mim, enquanto criador deste específico livro de poemas cujo título   corpo de festim revisita a minha própria sina de estar vivo e produtivo, mas     não faria mal descobrir o mecanismo, o gatilho, de cometer o único crime previsível, quiçá um icônico suicídio pela honra, ritualizado à moda  nipônica, para destituir-me enquanto símbolo terrível, do self à tal persona poética, de toda a libido, do meu “EU-lírico” (esse serial killer, ou o meu místico inner being) [….][28]


Através do discurso do “poeta”, que se autorrefere tanto como “persona poética” quanto como “EU-lírico”, percebe-se a fala ou escrita esquizofrênica do homem “prisioneiro” dentro do corpo, onde está “vivo e produtivo”. A princípio, o trecho citado acima lembra tanto de Foucault em Vigiar e punir, quando discursa sobre o corpo “preso” e “produtivo”, quanto de Deleuze e Guattari em AntiÉdipo, quando discursam sobre o “corpo sem órgãos”, (in)definido como “o modelo da morte” que “aparece quando o corpo sem órgãos repele e depõe os órgãos — nem boca, nem língua, nem dentes… até à automutilação, até ao suicídio”.[29] Ao relacionar analogicamente o corpo com a mandala, uma representação do cosmos em forma de diagrama que é utilizada em rituais tântricos de meditação, o poema também encenaria ora o movimento para uma (im)possível (re)união entre o ser humano (individual) e um Ser divino (universal), entre o eu e um Deus, ora o processo para uma (não) eventual (re)unificação das partes do ser fragmentado. Se por um lado o poeta enquanto homem se identifica com a sua alma e seu corpo, por outro lado, ao desejar se “destituir” da sua “persona”, o homem enquanto poeta finalmente (re)conhece que é o seu próprio “ego” que o faz ser um “EU” sujeito, e não um OUTRO livre. Produz-se, enfim, o desejo de produzir um produto improdutivo, ou até improdutível: a poesia sem o poeta. O poeta assim se tornaria, como Houdini, “o artista desaparecido sem deixar vestígio”, pois só poderia “livrar-se dos cadeados e das grades […] se fosse possível simplesmente, e para sempre, DESAPARECER DE VEZ”. [30]

Sem a identidade do poeta “EM SI”, não haveria mais o uni-verso unitário dos poemas, haveria apenas os multi-versos diversos da poesia. Na esquizopoética de Guarnieri, o “EU” não está mais preso no corpo nem é  mais a prisão do corpo, pois nos “antropoemas” que (de)compõem o Corpo de festim, o próprio homem é literalmente e figurativamente (re)escrito, tanto pelo corpo do livro quanto pelo livro do corpo, como poema objeto e não sujeito à (in)corporação. Afinal, tanto as máquinas-poemas quanto as máquinas-teorias estão plenamente desarranjadas e desligadas, e assim funcionam!

[1] http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=corpo

[2] http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=festa;
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=festim

[3] GUARNIERI, Alexandre. Corpo de festim – antropoemas. Rio de Janeiro, Confraria do Vento, 2014, 13-31.

[4] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010, p.20.

[5] Ibid., 18.

[6] Ibid., 11.

[7] Ibid., 20.

[8] Ibid., 20-21.

[9] Ibid., 21.

[10] Ibid., 22.

[11] Ibid., 21.

[12] Ibid., 20.

[13] Ibid., 16.

[14] Ibid., 20.

[15] DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.

[16] FREUD, Sigmund. “O inconsciente”. Em: Sigmund Freud obras completas volume 12: Introdução ao narcisismo, Ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 103.

[17] DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.

[18] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2004, p. 23-24.

[19] Ibid., 25.

[20] Ibid., 25-26.

[21] Ibid., 26.

[22] Ibid., 26-29.

[23] Ibid., 29.

[24] GUARNIERI, Alexandre. Corpo de festim – antropoemas. Rio de Janeiro, Confraria do Vento, 2014, 82-83.

[25] Ibid., 84-101.

[26] Ibid., 102-103.

[27] Ibid., 104-105.

[28] Ibid., 106-107.

[29] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010, p.435.

[30] GUARNIERI, Alexandre. Corpo de festim – antropoemas. Rio de Janeiro, Confraria do Vento, 2014, 106-107.

[Fonte: https://zonadapalavra.wordpress.com/2015/07/24/resenha-sobre-corpo-de-festim-de-alexandre-guarnieri-por-marco-alexandre-de-oliveira/]

Friday, July 10, 2015

Resenha do REFLEXOS & REFLEXÕES, por Luiza Lobo

Resenha: “Reflexos & reflexões” de Marco Alexandre de Oliveira (Gringo Carioca)

reflexaoRESENHA
Reflexos & reflexões, Gringo Carioca (pseud. de Marco Alexandre de Oliveira), Rio de Janeiro, Oito e meio, 2014. 87 p. ISBN 978-85-63883-60-5.
Luiza Lobo
Rio, março de 2015
É inegável a impregnação concretista, neste Reflexos & reflexões(2014), de Marco Alexandre de Oliveira, que o publica com o pseudônimo de Gringo Carioca, e nem poderia deixar de ser. Em seus trabalhos em congressos e na própria tese de Doutorado estudou bastante a poesia de base concretista, em suas idas e vindas entre os Estados Unidos e o Brasil. Brasileiro, mas educado nos Estados Unidos, há alguns anos decidiu aventurar-se e fixar-se aqui, o que lhe rendeu a confortável posição de bilíngue.
O livro de poesia, se não me engano o seu primeiro, surpreende pela maturidade do autor – embora tal surpresa não devesse ocorrer, dada a quantidade de estudos que este aluno de “honours” nos EUA já realizou. Chegando ao Brasil, logo desbravou os espaços do ensino, saltando do IBEU para a PUC, como quem vai e volta até a esquina.
O livro se abre muito inventivo, trazendo definições dicionários de reflexo e de reflexão, seguindo o modelo modernista de Eliot, no Waste Land, que nos preparou boas armadilhas em forma de boutade com supostas fontes utilizadas no seu The Waste Land. Mas aqui Marco segue à risca a ideia de reflexo, em que a verossimilhança entre objeto e imagem é estilhaçada, o que nos leva à reflexão.
Passado o susto inicial, deparamos com um índice – realmente índice, indício de palavras-guias, e não sumário, a rigor – de três páginas, que são um primor de súmula do pós-moderno. A maior parte dos títulos tem uma ou duas palavras, por vezes artigo e substantivo. Já este “índice” indica a linha concretista paródica e crítica escolhida pelo jovem autor: um corte seguro nas palavras e na realidade cotidiana levando a metáfora a tal extremo que esvazia a poesia de todo substrato sentimentalóide que em geral permeia a poesia contemporânea. Menos Drummond, nos seus momentos mais piegas, e mais Cabral, Augusto e Haroldo de Campos, ou Décio Pignatari nas suas fases mais cortantes.
Este corte no senso comum fica evidente em títulos como “sem zen”, “senso (in)comum”, “só lido”, “zazen” etc. Para completar o espírito de criatividade, o rapaz ainda faz uma intertextualidade com os dois sumários de Guimarães Rosa em Tutameia, que apresenta diversos jogo com as letras do alfabeto, seja nos sumários, seja no nome das personagens. Assim, os poemas vão de a a z, e todos os títulos vêm em minúsculas.
O famosíssimo Poema de sete faces, de Alguma poesia (1929), de Drummond, Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida, tão parodiado, inclusive na conhecida versão de Torquato Neto, ganha aqui uma inventiva releitura carioca, intitulada “poema de 7 caras”, que começa: “Quando nasci, um anjo malandro / desses que vivem na Lapa / disse: Vai, gringo! ser carioca na vida.”  Engenhoso também na sua penúltima estrofe, quando apresenta este auto-retrato: “Mundo mundo vagabundo / se fosse profundo / seria até bacana, não seria esse lixão. / Mundo mundo vagabundo / mais vago que nem palavrão. // Eu devo acrescentar / que esse sol / que esse sotaque / deixam a língua enrolada como outra” (2014, p. 57).
Mas há outras páginas menos paródicas com relação à poesia lírica modernista, mesmo que ainda tenham um travo do “para que tantas pernas, meu Deus?” da última estrofe do Poema de sete faces: “Eu não devia te dizer / mas essa lua /
mas esse conhaque / botam a gente comovido como o diabo” e que mergulham mais profundamente no concretismo, como o “para poesia pura”: para que poesia, / poesia para quê? // para poesia, / “poesia para” // poesia que para, / para que poesia // para poesia, / “poesia pura” (2014, p. 52).
Já noutros momentos a opção concretista é um fato – mas que não perde o sentido de mensagem, o que às vezes desaparecia no excessivo afã visual, na poesia concretista. É o caso do poema “perguntas”, título que aparece no índice, mas que na pág. 55 tem apenas ao alto sete pontos de interrogação; o poema se compõe exclusivamente de pontos de interrogação formando um enorme ponto idem. O recurso da interrogação tem uma variante cujo título, no índice, é “charadas”, mas que na pág. 31 surge apenas como vários pontos de interrogação em negrito sugerindo diversas perguntas, enigmas ou charadas.
“Tão alone” (2014, p. 79) é um poema bilíngue que diz tudo com muito pouco: “tão alone / So só”, no qual duas palavras são em português, tão e só, e duas em inglês, alone e so – que por acaso também significa tão, o que reduz a estrutura desse poema a dois versos redundantes, misturando línguas. “Zazen” (2014, p. 85), o último poema da mostra, joga com as letras z e a palavra zazen na forma de uma pessoa meditando e faz jus ao título do livro, reflexos & reflexões.
O espelhamento de sílabas, ecos, indagações, palavras, na sua unidade mínima, nos despertam, neste livro, para o vazio do sentido da maior parte de nossas ações diárias, e nos remete para a reflexão sobre o verdadeiro sentido da vida. Isso talvez responda ao verso do poema “para poesia pura” (2014, p. 52) “poesia para quê”. É o próprio poeta que nos responde, no poema visual “por q” (2014, p. 61): ainda uma interrogação dentro de um ovo contém a palavra “quê”, que nada mais é senão um óvulo. Aí está tudo que é um nada. Palavra precisa e certa. Excelente livro.

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